David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

“Paddleton”, um filme sobre cumplicidade e o direito de não sofrer

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Assisti a um filme de drama com comédia na Netflix lançado em 2019 que realmente me agradou. O título é “Paddleton”, em referência a um esporte criado por dois amigos que têm uma profunda relação de cumplicidade.

Um deles descobre que tem câncer e já não muito tempo de vida. Ele decide não fazer o tratamento e consegue uma autorização para tirar a própria vida em casa antes que a doença se torne dolorosa. Então pede ajuda ao amigo para morrer “da forma mais confortável possível”.

Eles viajam de carro por seis horas até chegarem a uma cidadezinha formada por imigrantes dinamarqueses. Lá, compram o “medicamento” que servirá para que Michael (Mark Duplass) tire a própria vida sem que haja sofrimento. Há algo de irônico e estúrdio nisso.

Andy (Ray Romano), ainda incomodado com a ideia, compra um cofre de brinquedo na mesma farmácia e decide esconder o medicamento, na tentativa de impedi-lo de morrer – justificando que um “milagre” poderia acontecer e Michael ter sua saúde restabelecida.

Mas, no fundo, e pelo peso da realidade que os dois dividem em suas solitárias vidas que encontram cumplicidade na partilha de convergências como um filme de kung-fu dos anos 1970 e jogos desconhecidos pela maioria, eles entendem que dor e partida são inevitáveis.

Ao longo da trajetória, há muitas boas sacadas de humor sobre os paradoxos da vida. A morte é tão temida quanto escarnecida. Em “Paddleton” é interessante a ausência de apelos melodramáticos.

A solidão é tão espaçosa quanto a solitude, com quem se confunde. Até mesmo o sofrimento recebe uma construção diferenciada, de algo que, quando não nos consome, somos nós que o consumimos – como em uma troca.

É um filme com poucos personagens e cenários – o que importa são os dois amigos, a relação entre Michael e Andy, a doença e suas percepções sutis, singelas, satíricas e pueris da vida.

A fotografia também chama a atenção porque por vezes transmite algo de morno e letárgico, talvez em referência ao que nos cabe dentro do que definimos como normalidade da vida diante daquilo que foge ao nosso controle.

O desenho e as sementes do andarilho

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Na minha infância, havia um andarilho que passava em frente de casa todos os dias – nunca pedia nada. Carregava um caderno com folhas em branco debaixo do braço. Do outro, levava um envelope grande com sementes. Um dia, quando eu estava sentado no meio-fio, ele se aproximou.

Ficou sorrindo e me olhando. Eu não sabia que tinha um pouco de pó de grafite no meu rosto. “Faz assim”, disse em tom baixo e balançando a cabeça. Balancei e ele abriu o caderno. O pó deitou sobre uma das folhas. Parou de sorrir e passou a mão suavemente por ela, usando dois dedos – os indicadores de cada mão.

Quando olhei outra vez para o caderno, vi um desenho idêntico ao meu rosto criado em não mais que 20 segundos. Ele tirou a folha e me entregou sem dizer palavra. Noutro dia, a folha já estava em branco. Fiquei lá fora o esperando passar outra vez pra perguntar o que tinha acontecido.

Ele apenas sorriu e sinalizou pra eu formar uma concha com as mãos. Me deu algumas sementes e disse que se eu as plantasse naquele dia, elas não desapareceriam. Mas se deixasse para o dia seguinte, elas correriam. Foi o que fiz. Quando a chuva-de-ouro nasceu, soube que ele morreu – cardiopatia congênita.

 

Written by David Arioch

May 14th, 2020 at 12:18 am

Coleirinha também quer viver

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(Foto: Jorge Schlemmer/IBC)

Uma coleirinha caiu da árvore enquanto um homem caminhava pela calçada. Estava viva, mas com as asas machucadas, sem condições de voar. Ele a pegou com cuidado, a ajeitou em uma espécie de ninho com a jaqueta e saiu caminhando.

Em casa, improvisou curativo e porção de alpiste e painço. Ficou observando a passarinha dentro de uma caixa de madeira com dois furos redondos que permitia deixar o biquinho pra fora.

“Deve ter de 40 a 50 dias de idade”, pensou. À noite, colocou a caixa ao lado da cama e começou a dar toquinhos. Dois toquinhos faziam a coleirinha reagir com duas bicadas leves. Achou graça. Três toquinhos e três bicadas, quatro toquinhos e quatro bicadas…

Pela manhã, como não havia mais bichos em casa, a deixou solta – com comida e água à vontade. Apenas fechou as janelas para evitar que se machucasse ou fosse capturada. À tarde, a levou ao veterinário. Como imaginou, não era grave, e em poucos dias poderia partir.

Na semana seguinte, já recuperada, começou a voar dentro de casa. Hora de partir. Abriu a janela e a coleirinha voou até escapar do seu campo de visão. “Missão cumprida”, pensou.

À noite, enquanto chuviscava, ouviu barulho familiar. Duas bicadas intervaladas, três bicadas intervaladas. Assim que abriu a janela, a coleirinha caiu em sua mão, sangrando e contraindo o que restou das asinhas molhadas.

Começou a chorar quando viu os chumbinhos cravados em sua carne. “Isso não pode ser coincidência”, disse. Passou a noite acordado na sala de espera da clínica veterinária – vez ou outra observava a coleirinha de costas, fragilizada.

Fez promessa pela sobrevivência da passarinha. Dois meses depois, a coleirinha já saudável partiu para não mais retornar e Mauro fechou sua fábrica de chumbinhos.

Um bom presente para a Terra no Dia da Terra

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Fotos: Tras Los Muros/Eyes On Animals/Animals Matter/Sea Shepherd/HSI/Fur Free Alliance/African Wildlife Foundation/CBEE/Greenpeace

Depois de degradar espaços naturais, matamos até 72 bilhões de animais terrestres por ano e somente nos matadouros, ou seja, para consumir suas carnes (dados da PETA).

Matamos 790 bilhões de peixes em seus próprios habitats (de forma intencional ou “acidental”) e o total pode chegar a 2,3 trilhões por ano – sem contabilizar os criados em cativeiro (dados da Fish Count UK).

A pesca comercial fere gravemente e mata mais de 650 mil mamíferos marinhos por ano (dados da Animal Matters).

Matamos mais de 100 milhões de animais (incluindo camundongos, sapos, coelhos, porquinhos-da-índia, porcos, primatas e pássaros) em testes de produtos, vivissecção e outros experimentos a cada ano (dados da PETA, Cruelty Free International e HSI).

Matamos mais de 10 milhões de animais silvestres por ano apenas para arrancar seus couros e utilizar na indústria da moda (dados da Last Chance for Animals).

Mais de 40% dos anfíbios do planeta estão ameaçados de extinção, assim como um terço de todos os mamíferos marinhos. A humanidade já afetou negativamente 75% das terras do planeta e 55% dos ecossistemas marinhos (dados da Plataforma Intergovernamental de Políticas Científicas em Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos).

Nos últimos 20 anos, matamos mais de um milhão de pangolins, animal que já estava aqui milhões de anos antes da chegada da humanidade (dados da African Wildlife Foundation), e que hoje tem seu nome associado ao coronavírus graças a nós.

Atualmente, 105.732 espécies conhecidas de animais estão ameaçadas de extinção no mundo todo (dados da União Internacional para a Conservação da Natureza).

Só no Brasil, e como consequência da destruição de espaços naturais, matamos por ano 475 milhões de animais atropelados nas rodovias brasileiras. São 15 animais silvestres mortos por segundo (dados do Centro Brasileiro de Estudos em Ecologia de Estradas).

Um bom presente para a Terra neste Dia da Terra seria deixar de matar também seus filhos não humanos.

Peixe também sofre

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Foto: Pixabay

Um homem pescava às margens do Rio Paraná quando um menino se aproximou. Não dizia nada, só observava, acompanhando o anzol. Mais de uma hora depois, continuava assistindo o pescador insistindo na captura de um peixe.

Quando já estava cansando, o homem sentiu uma fisgada e puxou a vara com cuidado, sem fazer muita força, pra confirmar se não era ilusão da insolação. Havia um dourado preso ao anzol, e lutava para se livrar da situação.

Usava o corpo todo. Se retorcia com tanta força que a cauda quase encostava na boca perfurada pelo gancho metálico. “Hoje você é meu, é sim, você é meu…”

Depois de muito esforço, quando conseguiu tirá-lo da água, o lançando em um pedaço de lona sobre uma porção descampada, o peixe se debatia e movia a cauda; e não só ele, o menino também.

Sangue escorria pela boca da criança – os olhos foram perdendo o viço e já não conseguia respirar. Segurava a própria garganta e rolava de um lado para o outro na terra.

Desesperado, se jogou no Rio Paraná. O pescador pulou logo atrás e, o puxando pelos cabelos, conseguiu levá-lo de volta à superfície. Engoliu um pouco de água, mas parecia bem.

Olhou em volta por instante e partiu sem dizer palavra enquanto o pescador procurava o dourado em vão.

Invadindo a floresta pra criar gado

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(Foto: Luciano Candisani)

Um fazendeiro criava gado ao lado de uma área de Mata Atlântica. Quando ele percebeu que não havia espaço para o rebanho que chegava do Mato Grosso, expandiu um “pouquinho” a propriedade invadindo mais a floresta.

Mais gado chegava e mais ele desmatava – sempre com o argumento de aumentar um “pouquinho”. Um dia, percebeu que já não restava muito o que derrubar e, para não parecer um “inimigo da natureza”, achou que seria uma boa ideia deixar intacto um restinho de mata.

Logo animais de diferentes espécies que viviam na região, mas que dependiam daquela floresta para se alimentar, começaram a percorrer a fazenda em busca de alimento; e quase sempre à noite, quando já não havia movimentação de pessoas.

Encolerizado, o homem decidiu comprar algumas espingardas e munição para expulsar os invasores. Com a autorização do governo em mãos, o desejo de matá-los em defesa de sua propriedade se intensificou. Não importava o tamanho – se era filhote, adulto, pai, mãe – sobrava bala pra todo mundo.

Seis meses depois, já sem ouvir nenhum som estranho de madrugada, saiu para caminhar perto de um curral velho. Ouviu um som suave e concluiu que não era nada. Voltou para casa e na mesma semana começou a sentir febre, dores pelo corpo e náuseas.

Nenhum médico descobriu o que era. Chegou a perder 25 quilos; vomitava pelo menos uma vez por hora e não conseguia dormir. Numa madrugada, quando parecia não ter mais o que expelir, o que amplificava e muito a sua dor, começou a chorar calado e a rastejar para fora da casa.

Queria sentir o ar fresco do que restou da floresta, mas a vegetação já era tão escassa que parecia não fazer diferença. Insistente e ainda ansiando por um frescor que pudesse renovar o fôlego, se embrenhou pela sobra de mata se arrastando.

O céu estava escuro – não havia lua nem estrelas; nenhum som vindo da mata que não fosse o da respiração vacilante. Por um momento, viu a sombra de uma movimentação e sentiu algo doendo no peito – dois tiros, um suspiro alongado e uma partida. O filho também pensava que era “bicho selvagem”.

Da calçada

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Foto: NCRI

Da calçada, o menino observava a comida dentro do restaurante. Entre uma colherada e outra, uma criança chamou a atenção do pai.

O homem reclamou com o gerente “que era difícil se concentrar na comida enquanto alguém assistia com olhos fixos e arregalados”.

Quando o segurança se aproximou, o menino ficou com medo e correu pela rua. Foi atropelado por uma moto. Quebrou as duas pernas – viradas em direção oposta.

Deitado, chorava e sorria, sorria e chorava – dor e alegria. Ainda sentia cheiro de comida – do lado, uma marmita que voou da garupa da moto.

 

 

Apenas fome

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Foto: ABS Free Pic

Mantinha o bebê com a cabeça sobre o ombro. Sentada num piso de terra batida, mirava o buraco na parede por onde o sol já não entrava. Só esperava a vez, e queria que fosse rápido. Se mataria. Mas pra tirar a própria vida também é preciso força.

Três dias na mesma posição e já não sentia mãos, pés nem as inflamações nas costas. Criancinha, com o corpinho escanifrado desproporcional à cabecinha, continuava dura – com olhos esbranquiçados.

Depois de muito esforço, deitou no chão com o bebê. Um vento repentino arrastou poeira e os cobriu – mortalha fina. Sem porta, sem janela, qualquer coisa poderia chegar ou partir. Nem chorava – nem conseguia.

Falar, gritar, se irritar ou odiar também exigia energia. Só queria esperar, não muito. A fome não importava mais. Alguém de passagem sepultou os corpos no fundo do casebre de barro. Um andarilho viu quando partiu.

Desenterrou, separou os ossos, colocou pra secar e enterrou o que sobrou. Moeu e fez farinha. Virou ração pra boi que trocou por um quilo de feijão. Preparou um caldo à noite, serviu cinco crianças famintas e orou pela alma da moça e do bebê.

“O Poço”: sociedade, miséria e aspirações humanas

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Lançado em 2019 e disponibilizado pela Netflix em fevereiro deste ano, “El Hoyo”, que no Brasil recebeu o nome de “O Poço”, é um filme do espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, que mistura suspense, terror e ficção científica.

No início, somos apresentados ao único elemento capaz de manter os personagens da história vivos – a requintada e faustosa comida oferecida pela administração de uma peculiar prisão vertical, preparada em uma cozinha que parece de um hotel de luxo.

O esmero no processo de preparo e as repreensões a qualquer falha acrescentam um rigor sardônico que contrasta com o cenário aviltante da prisão – um local que não se sabe onde fica, talvez pela despersonalização da própria realidade contextual – que pode ser qualquer lugar ou lugar nenhum.

A nós, basta apenas saber que a maioria, que não temos ideia de quem são, está lá cumprindo pena por algum crime (ou não), e dependendo do andar onde estão instalados, têm a oportunidade de comer uma vez por dia, quando desce uma plataforma com comida, caso os condenados dos andares de cima não tenham consumido tudo. Ou seja, ganha a liberdade aquele que conseguir manter-se vivo (alimentado) até a conclusão da pena.

Nesse cenário, conhecemos Goreng (Ivan Massagué) e Trimagasi (Zorion Eguileor). O primeiro, que chegou à prisão por vontade própria. aceitando cumprir uma pena de seis meses em troca de um título, tenta conversar com o velho condenado por atirar uma TV pela janela e matar de forma acidental um imigrante.

A princípio, Trimagasi se mostra desinteressado e incomodado com qualquer pretensão de socialização. Mas, com o passar dos dias, acabam criando um vínculo e uma conveniente relação de proximidade e mutualidade – inclusive nas atividades mais simples do dia (ou noite) – já que Gaztelu-Urrutia também desconstrói uma percepção tradicional de temporalidade a partir de um cenário soturno de poucas mudanças que, em alguns momentos, lembra um palco.

Trimagasi, uma figura enigmática amoral que parece saída de um filme expressionista alemão, instiga mais ilações por parte do espectador atento quando não diz nada do que quando fala. Afinal, seu corpo e seus olhos se comunicam muito – assim como seu pescoço contraído enterrado entre os ombros.

Com suas frases curtas, que trazem uma carga simbólica acompanhada de uma expressão desconfiada, satírica e vacilante, que reafirmam a crença de que nem tudo pode ser dito na luta pela sobrevivência, ele incorpora a imprevisibilidade da natureza humana diante da adversidade.

Goreng já é o oposto – e chega a ser tão transparente na sua própria e cândida expressão de ser (a começar pelo motivo de sua prisão) que tem sua ingenuidade celebrada por Trimagasi, que vê nisso um prazer e oportunidade. Não que o velho seja uma incorporação da maldade, mas apenas alguém pragmático tentando manter-se vivo o máximo que pode para “sair daquele buraco infernal”.

Quando Goreng se depara pela primeira vez com o que restou do banquete vindo dos andares de cima, que é o elemento mais importante daquele jogo injusto pela sobrevivência, que também é um retrato da nossa realidade capitalista, ele sente asco e se recusa a comer por dois dias. Nutre nojo ao testemunhar a maneira como Trimagasi com suas pequenas mãos violenta a mesa como um bárbaro esfaimado.

Gaztelu-Urrutia utiliza recursos semelhantes ao de cineastas como o italiano Ettore Scola em “Feios, Sujos e Malvados”, acentuando de forma caricata a repulsa e o antojo momentâneo ao evidenciar uma emergência da miséria de hábitos, que nasce de uma naturalização forçada pela experiência contínua.

Ou seja, o velho estava lá há muito tempo e, de alguma forma, se tornou parte do “poço”, ainda que ansiasse pela sua “liberdade”. Já Goreng estava lá em corpo, mas todo o resto ainda se alheava àquela realidade que lhe parecia estranha – medonha e taciturna que mostra farrapos humanos capazes das ações mais inacreditáveis.

A sua humanidade, neste caso como expressão de algo positivo, é preservada pela sua relação com um livro – “Dom Quixote”, de Cervantes, que ajuda na manutenção de sua lucidez e na crença de que se o corpo é castigado pela realidade, sua mente pode se nutrir pelo lirismo da irrealidade. Mas o velho e qualquer outra pessoa da prisão vê aquilo como expressão de fraqueza – com exceção da mulher que o entrevistou e o encaminhou para aquele lugar.

Quando são enviados a um dos andares onde a comida já não chega, porque os presos de cima não se importam com a fome ou sobrevivência dos demais, numa evidenciação do individualismo, Goreng amanhece amarrado e amordaçado. A amizade que, julgou verdadeira com Trimagasi, já não tem valor, pelo menos numa avaliação em que o velho não se imagina sobrevivendo por muitos dias sem se alimentar. Neste caso, sobreviveria não o mais forte, mas aquele mais “apto” à perpetuação do sistema.

Dessa vez o prato é Goreng. O velho o mantém na cama de concreto por dias, até que não resiste e decide cortar o primeiro pedaço de carne da perna do rapaz. A antropofagia acompanhada de uma concepção romântica medonha que antecipa uma ação, ainda que motivada pela sobrevivência, carrega um caráter ritual, embora naquele contexto vazio em significação até determinado momento.

Trimagasi é interrompido e degolado por Miharu (Alexandra Masangkay), uma jovem a quem Goreng já tinha tratado com consideração em uma situação anterior quando revelou preocupação com o seu bem-estar. A empatia então suplanta a miséria do ardil que guia a sobrevivência e a retribuição vem na forma do assassinato do velho. Miharu é arrebatadora e personifica vontade e instinto mais do que qualquer outro personagem daquela prisão – ela tem motivação – “um filho”. Mas também (avessa à socialização – os outros não importam) não fala, e não demora a partir.

Goreng já amanhece em outro andar – dividindo a cela com Imoguiri (Antonia San Juan), que cuida de um cãozinho, Ramsés II. A companheira de cela de Goreng personifica sensibilidade, justiça e consciência – tanto que se voluntariou como presa para testemunhar o “maldito sistema” com seus próprios olhos. Sua prisão também é uma forma de expiação e busca por redenção após ter enviado outros para aquele mundo.

O primeiro indício disso é que ela come um dia sim e um dia não para revezar com o cãozinho que a acompanha. Além disso, tenta instruir os outros presos dos andares inferiores a comerem duas pequenas porções de comida e prepararem outras duas para os presos do andar subsequente. Eles se negam a ouvi-la. Goreng, sensibilizado com a iniciativa de “redistribuição de possibilidades de sobrevivência”, usa uma tática mais agressiva que os convence. Ela reprova o método, mas acaba reconhecendo ausência de escolha.

Quando são enviados a um dos andares onde a comida não chega, Imoguiri comete suicídio em sacrifício a Goreng, a quem ela vê como o personagem providencial que pode promover uma grande mudança no sistema. Possivelmente também fez isso motivada por sentimento de retribuição – já que foi ela que o entrevistou e o encaminhou para “O Poço” em troca do título que ele tanto almejava.

Com a morte de Imoguiri e o sentimento de culpa de Goreng, ele, mais do que nunca, passa a sofrer uma crise existencial e a ter visões com Trimagasi, que assume uma forma de “outra consciência” de Goreng; o que é gerado tanto por um sentimento de culpa por ter sido obrigado a se alimentar do velho como também por já não se ver como quem era – se qualificando como alguém em nível de paridade com Trimagasi – ainda que o não tenha matado.

A realidade e uma combinação de sentimentos conflitantes, dinamitados, entre outros fatores, pelo reconhecimento malquisto do próprio canibalismo, que em um devaneio ganha status de antropofagia (que pode ser sua consciência tentando se eximir de culpa), o levam a comer as páginas do seu livro “Dom Quixote”, que é, de forma alegórica e simbólica, o seu único contato com o mundo externo e com a sua identidade pré-prisão.

O canibalismo também assume um caráter simbólico pessimista – de que há momentos em que a continuidade da vida em um mundo imerso em miséria material e imaterial depende do quanto estamos dispostos a anular outras existências. Goreng então amanhece no sexto andar, onde divide a cela com Baharat (Emilio Buale).

Quando Baharat decide fugir utilizando uma corda, na tentativa de chegar ao andar zero, mas é sabotado pelo casal de presos do quinto andar enquanto a escala, Goreng, imerso em um estado de inércia, recobra a consciência e assume um compromisso de fazer justiça diante de todas as perdas e infortúnios testemunhados naquele lugar. O seu primeiro ato é segurar Baharat quando ele provavelmente cairia morto com sua corda nos andares inferiores.

Reparação, justiça e redenção se tornam uma missão. Goreng divide com o companheiro de cela o plano de descer por todos os andares obrigando os presos dos primeiros 50 andares a jejuarem, permitindo que aqueles confinados nos andares inferiores possam receber uma pequena porção de comida, assim garantindo que os alimentos sejam redistribuídos de forma justa – colocando um fim à desforra e às mortes desnecessárias.

Nessa parte do filme, Goreng, como “justiceiro social” quer “destruir o sistema”. Há então uma crítica ainda mais clara ao capitalismo, egotismo e exclusivismo – já que em uma escala que segue uma ordem de superior a inferior – aqueles que estão nas escalas mais baixas, como numa divisão arbitrária de classes, não devem ser considerados e, se tiverem de ser sacrificados pelos de cima, está tudo bem, porque já são tipificados, mesmo em um lugar onde as posições e os privilégios são transitórios mês a mês, como inferiores ou de “segunda classe” – que não acrescentam nada ao mundo.

Os prazeres da dominância têm curto prazo de validade em “O Poço”, mas são o suficiente para os humanos, submetidos a situações extremas, sentirem-se envaidecidos pela própria pobreza imaterial – e é isso que garante o sistema da prisão, que funciona de acordo com as atitudes de seus prisioneiros. Avareza, violência, assassinato podem ser influenciados pelo meio, mas a decisão sobre o que fazer em cada momento é de responsabilidade da baliza moral (ou ausência dela) de cada um – com a isenção da administração, que apenas testemunha o espetáculo. Prova disso é que não há intervenção externa quando os presos decidem, por algum motivo, migrar de andar.

Com um senso de justiça à flor da pele, Goreng e Baharat, que personificam a busca por uma igualdade que mimetiza a grosso modo os princípios do socialismo, descem andar a andar, ameaçando aqueles que tentam comer mais do que o suficiente. Então encontram o “Sábio”, mestre de Baharat que diz que eles não devem impor nada, mas sim tentar dialogar.

Também devem selecionar um alimento para que chegue até a administração, quando a plataforma retornar ao topo, para deixar claro que eles alcançaram seu objetivo de provar que é possível despertar um senso de identidade e consideração coletiva – neste caso a sobremesa panacota, que eles passam a defender a qualquer custo como a “mensagem” ou mesmo “bandeira” de sua luta.

A tentativa soa alentadora, mas logo que voltam a descer sobre a plataforma pelos andares inferiores o diálogo é suplantado pela violência e até mesmo pelo assassinato daqueles que ousam atacar a mesa (plataforma) para se alimentarem. Então temos um banho de sangue em que uma “luta não violenta” dá vazão a uma selvageria em que acreditam que justifica os fins.

A partir daí, se o capitalismo alimenta a virulência da desconsideração do que seja o outro e seus interesses e vontades, privilegiando uma minoria, as experiências ditas socialistas ou comunistas (que são uma apropriação ideológica indevida) que descambaram no mundo para algum tipo de regime autoritário também são condenadas por Galder Gaztelu-Urrutia. O que fica claro é a evidenciação de uma cegueira moral em busca de um bem maior, que já não é, de todo, um bem e se apequena a partir dos meios utilizados para conquistá-los.

Em uma das celas, a dupla é atacada por dois homens que lutam como mercenários, e representam uma forma violenta de estranhamento e resistência irrefletida. Um deles havia matado Miharu. Baharat é ferido mortalmente, mas consegue resgatar Goreng, depois que “matam” os dois prisioneiros.

Então “descobrem que há muito mais andares inferiores do que imaginavam”. Em um deles, encontram a filha de Miharu, que Goreng pensava que fosse um menino. Após a resistência de Baharat, cedem à sensibilidade, por vezes inimiga da razão, e acabam entregando a panacota à menina que, faminta, a come – mas preserva os mesmos olhos desconfiados e titubeantes da mãe.

Baharat, que parecia personificar um espírito ancestral de guerra, já não resiste por muito tempo em decorrência dos ferimentos e morre. Mas a “luta continua”. Sozinho, Goreng ultrapassa o andar 300 quando a plataforma para e ele reencontra Trimagasi, saído da escuridão, que o lembra que a menina é a mensagem e que ele deve deixá-la retornar sozinha, já que um mensageiro é desnecessário.

Na realidade, Trimagasi é uma idealização sonial de Goreng, no pré-morte, e que sucumbiu depois de ser espancado até a morte na mesma cela em que Baharat recebeu um golpe letal. Essa combinação entre onírico e absurdo, que no caso do protagonista resulta de uma incompletude, de uma vontade irrealizável, trouxe-me lembranças de Arrabal e Jodorowsky.

Em síntese, “O Poço” é um retrato da sociedade, da reafirmação da ideia de que por pior que seja um cenário, ainda teremos miseráveis lutando por sua manutenção e até mesmo por estar no topo, junto aqueles que perpetuam a miséria dos seus.

Por isso, somente a educação pode ser capaz de mudar nossas relações com o mundo e com nós mesmos. Enquanto não estivermos preparados para uma mudança estrutural e não semearmos isso nas bases, nos depararemos com tentativas que podem se transformar naquilo que mais condenamos e desprezamos – indo na contramão do que acreditamos como justiça social.

Ademais, “O Poço” também é um filme que em pouco mais de 90 minutos explora com singularidade as aspirações humanas nas situações mais extremas e improváveis da existência, onde somos impelidos a agir para não nos desvanecermos – de forma alegórica e real. Afinal, o que seríamos capazes de fazer para alcançar um objetivo maior ou mesmo sobreviver?

“Let There Be Light”: traumas no pós-guerra

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Lançado em 1946 e disponibilizado pela Netflix, “Let There Be Light” é um documentário sobre as consequências psicológicas e emocionais da guerra na vida dos soldados dos EUA que participaram da Segunda Guerra Mundial. Um trabalho impactante, o filme foi proibido pelo governo de ser exibido por mais de 30 anos.

À época, temiam que a opinião pública pudesse se voltar contra o governo e inviabilizar o interesse dos mais jovens em ingressarem nas Forças Armadas. Logo no início o documentário informa que pelo menos 20% das baixas dos EUA durante a guerra foram de natureza psiquiátrica.

Um retrato sensível de uma realidade pouco conhecida e divulgada, somos apresentados em “Let There Be Light” a jovens com histórias bem peculiares de experiências na guerra e que encontram dificuldades em se adaptarem à realidade civil quando retornam para casa.

Por isso são encaminhados ao Hospital General Mason, situado em Long Island (NY), onde passam alguns meses em tratamento psiquiátrico que inclui hipnose e narcoanálise. Algumas histórias chamam bastante atenção, como a de um rapaz que sofre um trauma psicológico tão severo na guerra que perde os movimentos das pernas – não conseguindo mais andar.

Por meio da narcoanálise, ele recupera os movimentos. Há também jovens que sofrem amnésia e não sabem quem são, mas que, por meio da hipnose, resgatam a própria identidade. Alguns relatam que durante a guerra perderam a vontade de viver, se colocando em situações perigosas – buscando a própria morte – algo comum principalmente entre aqueles que testemunharam tantas mortes no seu próprio batalhão.

Outros não sabem se a guerra acabou e se estão em território inimigo ou nos EUA. Há aqueles que não conseguem mais dormir, parar de chorar, que gaguejam a maior parte do tempo ou sentem tremores que parecem não ter fim. Chama atenção o tratamento dispensado pelos psiquiatras aos soldados.

Eles são atenciosos, sensíveis, bem preparados e fazem com que muitos soldados consigam redescobrir ou recuperar algo que perderam durante a guerra. Há um momento simbólico daquela realidade geral quando um dos psiquiatras diz que eles jamais serão quem eram.

Isso é corroborado por um rapaz que afirma que antes da guerra ele adorava sair com os amigos, se divertir. Porém, tudo isso perde o sentido para ele. Há um contraste muito grande com a imagem que os EUA venderam dos soldados da época.

Muitos deles no filme parecem inseguros e há aqueles que não sentem prazer ou orgulho de ter participado da guerra. Um dos soldados, que foi para a zona de combate, esconde as próprias medalhas que recebeu porque não as reconhece como uma grande conquista.

“Let There Be Light” mostra que muitos deles eram realmente muito jovens quando retornaram para casa, e ainda assim foram enviados para combater japoneses e alemães. Há algo de ingênuo e inocente em suas expressões e falas, o que é percebido pelos psiquiatras que os tratam de uma forma que muitos deles jamais experimentaram nem mesmo no contexto familiar.

É interessante a forma como o filme apresenta a evolução de alguns soldados, embora deixe claro que seja impossível prever se eles realmente voltaram a ser saudáveis no aspecto psicológico e emocional em longo prazo. Mas no documentário o que mais se destaca é a valorização da dignidade humana e o reconhecimento de que, diferente do contexto da guerra, vidas importam.